- guia de um ordinário vernáculo -


terça-feira, 23 de agosto de 2011

EMBARAÇADO

EMBARAÇADO

existem épocas que eu fico assim
acho que me perdi de mim
e choro o estorvo do meu leite derramado
e fico procurando algo que possa me distrair

existem épocas que eu fico assim
acho que a poesia desistiu de mim
e grito minhas perguntas a qualquer estranho
que aparece e me oferece um sorriso:
você viu minha alma por aí?

existem épocas que não me parecem certas
quando foi mesmo que eu me perdi?
quando foi que me transformei em cidadão de Atenas
e fiquei sem admirar suas melenas e me transformei
num Narciso que perdeu o gosto e a qualidade?

existem épocas que contesto meu nascimento
digo digo que tudo é puro tormento
enceno um drama e dou vazão à um invisível sofrimento
crio mil novos sentimentos e acabo afirmando vencimento:
quando nasci o céu estava de férias
ou realmente o meu anjo safado se esqueceu de mim?

existem épocas que eu viro uma Geni
e acho que tá todo mundo contra mim
suspiro vítima corro algoz mudo no ato
fico falho (mas não estático) e não acho
um bom conselho: viro de lado e encontro
meu desatino:

a poesia fugiu
e o mundo parece tão estranho
sem samba e sem dança
por que a tatuagem que fiz
de tanto amar
está cheia de mancha

nos bastidores da minha vida
existem dias que eu me lembro
com exatidão de quando você
me disse não

e compreendo que foi então
que minha poesia virou uma vitrine
construída na imaginação

podemos acabar não sendo
amantes futuros
e eu posso continuar
sendo inseguro

mas eu te juro!
acabou de vez o meu luto

agora e para sempre
meu bem
o que se diz
é
o
que
se
sente.


(poema vencedor da categoria sênior da XX Festa Literária do Gregor Mendel - 2011)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

POEMA DE TARDE ALGUMA

POEMA DE TARDE ALGUMA

escrevo olhando
para o vento do entardecer
meu anoitecer se liberta nas
asas de uma canção
as entranhas do meu coração
se contorcem feito pássaros
recentemente libertos
e por isso a poesia
se perde entre os meandros
de nenhum rio que me torna
não-árido
não-seco
úmido.

escrevo ouvindo
o cheiro do pão de algum lugar
e aguardando o sacolejar de
uma voz nas voltas do esvoaçante
presente tão ausente do aguardar
e por isso não há como
descodificar a presente codificação
essa gloriosa comunicação entre dois mundos:
o meu de lá
o meu de cá.

no fim
eu sei o que quero dizer
e sei do que quero me livrar
mas fico até com medo de estar sendo dramático
tenho uma familiar tendência ao teatro que não vem de agora
(se bem me lembro o sangue dos salamaleques ensaiados ou não é herança dominante dos meus sobrenomes)

não há nada
para lamentar
justamente porque nada há.

escrevo olhando para
o morrer fingido do sol
e ouço o lamento sentido
de alguém:

se a ideia da poesia
é me esvaziar

então por que
eu só fico mais cheio
de nada?