- guia de um ordinário vernáculo -


terça-feira, 24 de agosto de 2021

FLUTUO NO SILÊNCIO - e pur si muove!

às vezes é difícil rastrear a trilha que me trouxe aqui. ainda encontro corredores antigos com portas feridas, minha voz talvez esteja mais rouca, mas nova e contínua. mas de alguma maneira, estou aqui.

mais uma lição de humanidade que consigo perceber como os marcos de constantes boas vindas ao osso da estrutura, virei adulto. ensinaram-me a dissimulação como respiro de vida, são os hábitos de viver. fingir, é preciso mesmo fingir que capitulo, que cedo, que renuncio ao que escrevi! saber quando perdi o jogo dos subterfúgios se apresenta para mim como uma meditação: qual o homem que busco ser? minha teimosia em reclamar uma consciência e novidade nos meus passos: tenho medo de acovardar e sacrificar grãos de incenso, esses que não são mais acesos.

qual o homem que busco ser? essas coisas se apresentam na maneira como se costura o momento, as reações, sempre as mais sinceras. porque é esse o homem que quero ser: na verdade, e na liberdade, costurando meu caminho do jeito que creio. é a minha vida. não dissimulo o que escrevo, penso, falo. trabalho com a palavra viva da escrita. sou ator da literatura. negar o que a inquisição exige, acolher o silêncio obsequioso, penas e farsas, tudo comédia dessas vidas, privadas. é sobre o que eu falo, é sobre o que eu penso todo dia, nesses dias de crise e morte, e as tragédias das censuras, cátedra vazia, imagine o rombo no teto da sistina.

agora em ares de cronista: é de se reconhecer o que vemos nestas terras nos últimos anos, quando a palavra liberdade deixou de ser um grito boêmio dos sonhos de vida e passou a ser grito de marechais inexistentes, presos a um galopante rocinante sem ares algum, ideias de golpes rondando o refluxo da cegueira dos empanzinados. 

qual o homem que busco ser? o homem que sempre fui with this wind blowing, and this tide. quando experimentei o gosto de ser viúva arrastada pelo salão, pequena prostituta de mentes delirantes, sempre no arfar do pecado. fui muito feito de pedra, coberto de fuligem marinha, restos das nossas ações, nossos mariscos, sambaqui. fui muito vento sobre o vitral, ebó de semanas nas avenidas. permanente na escolha de ser minha linha.

serei sempre místico, mesmo quando descubro que sou o professorzinho idealista. talvez tenha sido também o caso do trisavó profundo do recôncavo. sei que ele não existe mais, ninguém jamais saberá de quando ele sentou sozinho e constatou que desaparecia. é como sinto a vida eterna. é o que costuramos na nossa mortalha de usar no dia a dia.

sábado, 21 de agosto de 2021

QUANDO EU ERA POETA

Quando eu era menino, e ávido descobridor de mim mesmo, escrevia poesia como moisés golpeando a pedra. os borbotões eram de mim, mas para afluentes. e foi nessa enseada estranha que navegaram tantas professoras. ouvindo e entendendo meu milagre, meu mistério, a voz mesma que nascia do bonito que me apresentavam. essas mulheres, sagradas parcas, ouviram meus ossos cheio de sal. 

a galeria de mulheres, madonas de quadro vivo, mães-fios, vejo ainda o cordato cordão de rubi e carmim. minha vó em suas histórias primeiras, minha mãe e suas recontagens penélopes, dona maria, seu cheiro de castigo, limão e milho. nete, solange, tânia, mariana, carolina, mulheres construtoras árduas de horizontes. essa ponta de toque da água quando antes do primeiro toque. as vasilhas de caruru entre os pequenos distribuída. o cheiro eterno de galinha e banana.

quando eu era menino e escrevia poesia todos os dias, incomodava minhas professoras com indagações místicas. pressentia o chão que poderia pisar com a minha língua. porque é de minha voz que me faço carpinteiro. elas foram falantes bosques, o suspeitar da fumaça pitonisa. mas uma me disse, costurando, que hoje não escrevia mais, o trabalho foi lhe secando. o bom da existência de deus é o temeroso que existe em olhar a realidade. os avisos são educação, por isso o ifá, delfos, jacuípe, meu vaticano.

nete tinha voz de velha, e ainda não era, mas me ensinou sobre deus, a raiva do desigual. foi quando aprendi a respeitar a revolta, a indignação que é hoje meu pão silêncio. quando eu era menino, rezei escadarias para atena, e via mesmo seu azul vestido andando em frente de mim. a delíria de ser rito. há outra, estava de olhos fechados, é possível que tenha sido maria, a de colônia, branca de pedra, mas celeste. a água que cai sobre todas as cabeças, mucunã. qualquer uma das minhas mães.

quando eu era menino, tremi quando meu chão estivesse seco, e por isso sempre nele derramei meus vinhos, abri covas nas catacumbas para derrubar leite e mel. resisto ainda que dispersas estejam as cinzas, dendê, mel e água benta.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

QUEM NOS DIRÁ MEMENTO MORI?

 QUEM NOS DIRÁ MEMENTO MORI?

agora que nos acostumamos com a catástrofe, é de entender como são tépidas as ocasiões dos grandes crimes. o exigido silêncio diante do absurdo torna possível o caminhar, já estamos todos tão cansados, o que esperar de nossa força? então esquecemos. é verdade que guarda-se a suspeita do que poderíamos ter sido se reagíssemos ao morticínio, o caminho que teria sido construído no passado sanguíneo. mas buscamos o chão após cada passo, e andar gritando é coisa que não se faz, pois assim nos ensinaram os que antes também calaram porque era assim mais fácil: ser tépido, nunca brusco, ir enrolando os trilhos, enredando o fio no dedo, vivendo porque é o que conhecemos.
e ninguém falará, antes que o terrível tenha acontecido, pois o nosso ofício é lamentar o vidro partido. é depois a hora de ver, nunca adivinhando o que em nossos olhos é físico. lembra-te apenas passageiramente das grandes ideias do dia a dia, a tia velha democracia, a morte dos que já esquecemos, o sofrimento que se unirá às queixas passadas. e ninguém nos dirá que também morremos ao aceitar o abuso por escrúpulo. é o que vejo nas notícias, nas falas miúdas, nas imposições nêmesis.
então entendo que é possível rir enquanto o mundo acaba, pois banho-me até a cintura de água tépida que escorre, única possível, da boca dos vizinhos. morno costume: passado passado. amanhã morreremos, ensimesmados.