- guia de um ordinário vernáculo -


terça-feira, 13 de abril de 2021

NOVELO

NOVELO

é óbvio que na escuridão não se vê norte,
e é mesmo o sul que procuramos dentro daqui,
as infinitas terras, múltiplas dimensões,
muitos tempos vivificados neste espaço:
sangues histórias futuras tensões.

porém não se vê nada, nada que aspire,
a água salgada nas tripas de nossas mãos,
trens antigos sempre sendo o vindo,
o que viria, o que virá,
é como hoje se faz poesia.

e nada se toque, nada pare a hecatombe,
sacrifícios incontáveis, cálculo eterno
nas grandes bombas que caem sobre as cidades,
não há sangue, por isso ninguém grita, sufoca.

é esperado que haja qualquer semente de luta,
olhos cegos, desesperos e infernos,
qualquer pé para caminhar pelos
dias azuis, ontem parou de chover,
pode-se viver.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

MEDITAÇÃO REMOTA

 MEDITAÇÃO REMOTA

escorrem de minha boca
tentativas e cansaços
o fio de ouro, a bússola pura
um labor, um ofício, a língua sem melodia
o pensar e delírios, vagas querências
de raízes, espíritos, críticos
enjaulados, feridos, inúteis.

meu ofício, labor de onda quebrada,
não salva, não constrói passos, caminhos.
tenho sempre o peito ardendo,
algo que não é a fúria, mas a inutilidade
escarrada, meu falar inócuo.

são vidas em fomes, resignar contido,
a textura em úlcera, a telementira.
meu choro partido, arma, palavra,
tentativas vazias.

domingo, 11 de abril de 2021

CRÔNICA 2

 Há que se esconder a raiva, ou ignorar os pedidos de socorro que todos damos silenciosamente, pois é proibido gritar no cotidiano dos dias imóveis.

Caminhamos, pois é necessário caminhar, assim nos ensinaram quando abriram os caminhos de calcário vermelho e fizeram nossas pernas fortes para a queda e para a pedra.

Amanhã retorno aos ritos cotidianos do ganhar o pão que me alimentará até cessar a necessidade de ser carne e corpo. Ressinto-me das pequenas humilhações que o ofício impõe. Sinto como uma espinha de peixe, e não há vela santa que possa me desengasgar da arrogância que os clientes da educação levantam sem pejo. Fui lenhado em cruz por levantar bandeira. Fui taxado de comunista por refletir cotidianamente sobre a injustiça da nossa vida. Que outra coisa eu posso fazer? além de falar, falar e ocasionalmente escrever, mesmo que não me leiam, mesmo que me apagam, mesmo que não haja baú para minhas apalavras?

Consequências da solidão. Há algo de prisioneiro na minha obstinação. Quero ficar vivo, e pressinto que poderei vencer, como tantos outros desesperançados, este momento iracundo. Transito entre os círculos do inferno destinados ao furibundos, longe de qualquer resignação, suntuosa palavra. 

Quando corro pela orla da Barra, encontro comportamentos mesquinhos nos rostos limpos, mesmo em tardes pandêmicas. Como não ter raiva, em todo lugar, em todo tempo? Por mim, por aqueles que morrem, por aqueles sem condições de viver.

Vamos sendo afligidos todos os dias por notícias terríveis. O bolso aperta, e eu tenho tantos sonhos. Tenho vergonha da situação que nos colocaram. E acima de tudo, tenho raiva, tenho raiva. Se eu pudesse transfigurar minha raiva em ação, e essa ação nos poupasse lágrimas! Mas não existem milagres neste mundo, cada mais percebo. Não há justiça, também. Há caos e coincidências, providências do universo. Por enquanto, tenho que transformar a raiva em paciência.

Tudo passará, e aqui não rezo cristiano. Tudo passará porque nenhum de nós poderá se adiar indefinidamente. Mesquinhos, nossa corrida em calcários vermelhos não nos levará muito longe.

São os tempos, são os tempos.
Fomos felizes e as paredes nos dão prova da esperança. 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

CRÔNICA 1

Não é tempo de poesia. A poesia não pode explicar nada do que estamos sentindo agora.  Poesia é memória, e nosso tempo composto de absurdo precisa ser explicado. É tempo de prosa, e prosa óbvia, prosa prova, prosa didática, prosa professor. É tempo de prosa, pelo menos é assim que tem acontecido aqui.

A raiva é um sentimento constante, todos os dias. Raiva de tanta morte, raiva dos crimes que nos fazem, raiva da passividade, raiva do medo, raiva da raiva, raiva da impotência, raiva da esperança. Como posso ousar ter esperanças, sabendo o que sei, sentindo o que me obrigam a sentir? Meu povo, essa gente que me é corrente invisível, atravessados todos no que eu também sou, nossa guarda compartilhada da esperança que era o Brasil, desaparece. Como minhas mãos são pequenas, como meus gestos morrem como borboletas logo ali! As ondas que gero com minhas palavras não mudam nem mesmo o meu próprio comportamento. Mas ainda tenho esperanças.

Ousam nos exigir continuidade, como se encíclicas fôssemos. É preciso falar, logar, clicar, postar, é preciso corrigir, sorrir, fechar, suportar, é preciso ouvir, fazer, perder. Tudo continuar. 

Meu trabalho tem sido difícil. Tenho cinco anos de sala de aula. De tudo que é ser professor, a certeza do ofício, a dignidade da persistência, toda essa dureza insistente, tudo era epifania na sala de aula, a relação entre eu e os alunos, a minha fé, a minha delícia, o meu delírio de pensar acompanhado. Tudo isso foi-me tirado, é consequência da pandemia, agora estamos todos em casa, e essa casa também é trabalho, não vemos mais nenhuma fronteira. Uma tarefa coletiva virou uma solidão arrasadora. Minha imagem chega a eles em ondas. E estão todos cansados.

Nós estamos cansados, e eu estou cansado de tanta coisa, e nossos alunos também. Adolescentes que não estão tendo tantas experiências, como podemos esperar qualquer coisa além de uma resposta hesitante? São tempos de guerra, era caso de uma amorosa disciplina, mas não temos esse espírito no Brasil. Poderíamos ter, mas aí são minhas vontades de desejar que possamos existir. Não preciso imaginar o quanto é difícil, pois para mim cada dia é o meio do Atlântico.

Não deixo de estar solitário, apesar da consciência. Talvez encontre um pouco de desespero no meu cansaço, na minha apatia, na minha tristeza (por que não dizer?): tristeza grande, e tenho medo de quando começar a chover.

E ainda existem as injustiças íntimas, um espinho no meu olho, sempre me obrigando a ter mais coragem, mais vontade de falar "existo". Vinte e oito anos, há dez anos me assumi. Hoje em dia não se fala mais em se assumir (ou assim li em algum lugar), mas eu me assumi para lutar ferozmente pela minha ilha. Ainda hoje, depois de tanta briga por dignidade, existem perseguições pelo que escrevo, pelo que falo, pelo que sou. Há quem ache que pode questionar quem eu sou. Como eu poderia imaginar que a liberdade existe nessas terras arrasadas? Símbolos dos tempos também aqui. 

A pobreza cresce no reino da morte, mas por enquanto ainda sou testemunha viva.

Fico com a prosa, a poesia anda envergonhada, há muito o que explicar, e é tempo de registrar. A recordação virá, talvez, depois.