- guia de um ordinário vernáculo -


quarta-feira, 5 de maio de 2021

CRÔNICA 3

Para mim, a dor da vida sempre foi a injustiça. É onde mais sinto a fratura da máquina do mundo. Percorre todo o meu espaço, contorce minhas mãos na obrigação do ver. É difícil entender quais são os mundos que preciso escolher. Desconfio que compartilho a mesma dor entre cordas que voam furtando o tempo. É algo que me consola, uma vez que o mundo vai me tornando cético contra a minha vontade. Tento agarrar-me ao sólido do perene rio, intermitente, que arde meu choro. Pois constantemente choro um pouco, é quase uma forma de rir, o desejo de sentir. Vou deixando minha pele de esperança. Não há surpresa: meu país está de luto entorpecido, as pessoas desistiram de esperar a pandemia acabar e começam a lançar-se no desespero violentamente. Ânsia e mudez, aproveitando o furor dos poucos dias até a realidade vestir-se de morte, o véu cada vez mais longo, enquanto ficamos surdos.

***

Registre-se: não encontramos decisão.
Deslize-se: a alma ao corpo indaga.
Derrelide-se: o covarde abre as asas.
Amorfine-se: a vida levanta a saia.

***

Da profissão de professor que eu tanto admirei em meus mestres e por isso lhes segui o caminho, pouco restou. Há muito desprezo e qualquer mágoa escondida por seu papel incompreendido. Sem mãos para darem e corações para confiarem, vagam os mestres entre o cansaço e o pejo. Solitários, preenchem salas e salas e não lhes sobra tempo para o perceber. Há medo, e talvez seja tudo. Falamos de vela na mão, ofegantes. E quase nunca é a nossa voz, porque rareada a liberdade ou a condição. Duro ser jovem e não crer em ilusões. Na verdade, não há ribalta, e qualquer bolso que tilinta alimenta ilusões e tolices. Bálsamos existem, mas não é comida de dia de semana. Há quem creia, não eu. Porque desacreditaram do que dizíamos e acreditamos não dizer nada. Agora, mudos mesmo de pavor, não reconhecemos a verdade do mundo. Mas se todos morrem, é fato, porque não tentar também?! Dispersas as minhas admirações, torno-me parte do silencioso grito. Porque há tanto medo: morrer, ousar dizer.

***

Ainda não será hoje que escreverei sobre a raiva. Talvez não o faça nunca, tão presente que está em mim. Não posso ainda ter a ousadia de conseguir ver o que virá. Cassandra nunca passou aos pés de mim, Tirésias existindo para desafiar. O quadro não pode ser vermelho, porque estou lidando com o súbito. A minha triste, vulgar, tão repetida esperança de que tudo vai mudar se eu calçasse meias.