- guia de um ordinário vernáculo -


domingo, 16 de novembro de 2014

SENHORA ACORRENTADA

SENHORA ACORRENTADA

a secura do poço
é o fogo perpétuo
criando dilúvios de vento
destruindo as barragens
dos meus inventos

a areia sufocando
minhas vidas e os dedos
e sempre o medo do
tempo
senhor cruel da musa escrava
agora sofrida, agora lacaia

poderia vir o desespero
e as pragas pestilentas
invadindo minhas dunas
destruindo o silêncio
da ágora vazia

mas a água liberta
o duro das pedras
e meus deuses adormecidos
acordaram enlouquecidos
com o batuque de outras

feras.

domingo, 3 de agosto de 2014

O GRITO

O GRITO

ainda não ouvi
meu grito de loucura
e o gesto que farei
quando decidir que basta:

meu grito é fruta verde no pé
o olhar sedendo
a boca aberta
a ânsia santa de conhecer
todo pecado.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

FLAMBOYANT

FLAMBOYANT

perdidos entre flores raras
abrasados sob o clarão vermelho
cores que ninguém ouviu

a hesitação e o beijo
os livros queimando
as testemunhas silenciosas

nem os fantasmas lembram
que um dia existimos
mas você resolveu ficar

o vento nos petrificou
em estátuas de mármore:
mas somos feitos de sal

de nossa escultura quebrada
não ficou nada sob a flor:

não ficaram seus sussurros
nem minhas fugas sem rumo

nem meu apelo banal.

terça-feira, 27 de maio de 2014

DESOLAÇÃO

DESOLAÇÃO

o silêncio marcado a fogo
bocas torcidas, dedos feridos
olhos estéreis
solo e sal

em sua lista costurada
o nada que sangra
e minhas veias entupidas
de vazias esperanças

o fogo inconstruído
língua, névoa dolorida
sua figura que grita
e o olhar ensaiado
antes só dado

a gigantes suicidas.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

FINALIDADE

FINALIDADE

iniciou-se o mundo
há sete dias
através de algumas
palavras

e foram eras formadas
na loucura do desejo

a espera insone
o olhar desperto
a hesitação que
precede toda queda

o pensamento
enlaçou dias
e o pó das sandálias:
estradas tortas

no fim
ele não me segurou
quando desapareci
e o amor de sete dias
foi cera de vela

não restou muita coisa

depois do último beijo

segunda-feira, 28 de abril de 2014

ELOGIO

ELOGIO

em dias como esses
me sinto irremediavelmente vivo
e a certeza me devora
com a força do vento que me assusta
não cumpri ainda nenhuma promessa
e minha vida se arrasta às pressas
meu corpo reluz de culpa
sim, estou errado e não me dói a consciência
pensamento atroz e dolorido
sou uma estátua de mármore
cheia de curvas e roupas enfurnadas
deu-me Deus a dúvida dolorosa
de não saber por qual estrada perco-me
(estava de olhos fechados quando
cheguei ao portão)
morrerei um dia mas sussurra-me alguém
que não é hoje e suspiro:
ainda há tempo de me arrepender
e por isso ignoro os olhares e a cobiça
enquanto tento chamar sua atenção
o que dói em toda gente é a certeza
de que em todo tempo a humanidade
perde um pouco de si:
penso todos os dias na morte
e alguns me repreendem:
ainda sou novo para isso
meu pai um dia me chamou
de velho e foi o melhor elogio
que já recebi:

eu sei que ela
me espreita

logo ali.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

SEGREDO

SEGREDO

é difícil guardar
segredos
de mim mesmo

existem coisas que
eu não posso saber

por exemplo:
eu olho para
você como
quem não olha

olhar para você
é meu sussurro
no ouvido

beijar os dedos
e prometer silêncio

não me conto
que te sonho
e por isso

não existo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

EXPLICAÇÃO

EXPLICAÇÃO

se falo de amor
e rimo as cores do coração
com a angustia de toda paixão

ou se corro de Deus
só para suplicar de novo
o seu perdão

ou se acho besta a disposição
das pedras e os rostos deles
quando me dizem: ‘esqueça’

ou se homens morrem nas ruas
explodindo com câmeras nas mãos
e todos os dias todos discutem e curtem
a dança da posição e o contorcionismo da oposição

ou se me cansa falar do outro como se fala por aí
todos muito cheios de si a proclamar que a poesia
muda o mundo mas eu mesmo nunca li

ou se me calo diante dos meus irmãos que morrem
por calçarem os saltos que trazem dentro de si

ou se às vezes eu acho que o mundo foi feito pra mim
e me inclino sem saber diante de pessoas que escolho
para me superarem e pisarem com força bem assim

ou se eu volto de novo ao amor
e invento um velho novo amor
e se tudo que eu falo é sobre ele

é porque eu só sei de mim
e sentir  os outros ainda
é muito esforço:

tentativas que não

cabem aqui.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

CANÇÃO SUSSURRADA AO OUVIDO ou GRILHÕES DO OFÍCIO

CANÇÃO SUSSURRADA AO OUVIDO ou GRILHÕES DO OFÍCIO

porque eu sei
que tudo será
silêncio

vivo através
dos risos
preparando

o tempo e o auxílio
- gritos às vezes
falam pouco –

meu dizer é no olho:
reticências
do exílio.


domingo, 5 de janeiro de 2014

ESCRITO A FÓRCEPS



ESCRITO A FÓRCEPS

deslizo e não prossigo
caminho e não consigo
abrem-me as comportas
deus me fecha o portão
a escrita é a minha
verdadeira maldição

sinto o impulso e o bloqueio
a dor de gozar o gozo preso
meu coração que palpita
um fumo preto
e as espirais de letras mortas

arranco os poemas forçosamente
às vezes suo e me canso vencido
escorrego para dentro do abrigo
o esquecimento que carrego comigo

o poema que não me consome
e me deixa com esse gosto
de trabalho inconclusivo
ainda não é meu:

resta sentir na boca
da alma aquele soco
que incendeia as
tentativas dolorosamente
primitivas:

o poema que não dói
ainda não sofreu.