- guia de um ordinário vernáculo -


quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O VÍCIO E O CELULAR


O VÍCIO E O CELULAR

o vazio da tela me atrai
e os aplicativos sempre me distraem
acendo a luz para de novo verificar
o nada que aconteceu no meu celular

revisito sem parar as mesmas coisas,
e são fotos e vídeos e likes repetidos,
não tenho nem mesmo a coragem
de enfrentar a armadilha do feed infinito

se falo de uns óculos ou de um sapato
logo o algoritmo me surpreende os olhos
e as propagandas pululam para mim

enquanto leio textos enormes, e rio de um gato,
se tiver sorte, ouvindo meu telefone vibrar no limbo,
não se mexe: é meu vício, a trama do celular que é detrito.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

DEFESAS


DEFESAS


MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade


Sei que a minha história não interessa a ninguém.
Essa consciência me dá liberdade de contá-la como me aprouver.

Defesa do esquecimento.

Hoje eu acompanhei minha avó em uma visita a sua prima mais velha. Essa minha tia-avó sofre há 12 anos de demência. A figura que contemplei nada me lembra a personagem que criei em minha cabeça durante as visitas da infância ou através das histórias contadas mil vezes pela narrativa envolvente de minha avó. A ideia vaga que tenho dela se esfumaça e contemplo a figura pequena sentada na cadeira. Um quadro melancólico, a senilidade, a fragilidade de um corpo que antes se apresentava robusto e alto, a voz vacilante quando era poderosa, potente, um trovão que se ouvia atravessando a casa declamando seus dois bordões favoritos (“um espetáculo” e “porra!”), o grotesco terno de uma boca cheio da ausência de dentes que esconde a conhecida beleza de antigamente, beleza que fechava comércios, beleza que inspirava luxúria, sensualidade que arrebatou poderosos. Tudo isso, e toda a vida além, os sofrimentos conjugais, as violências, as belezas da prole, a satisfação da autonomia, tudo aquilo virou um presente que ela não recorda. Ou pelo menos não recorda todo o tempo. As acompanhantes nos dizem que, por vezes, ela começa a recitar um rosário de memórias. São ilhas cada vez mais esparsas, deslocadas para longe pelos gritos histéricos da demência. É o ocaso, o cheiro de velhice, o memento mori do Imperador, a lembrança do futuro. Muito ela esqueceu, mas não esqueceu do amor.

Isso me impressionou. Enquanto minha avó, talvez constrangida pelo desafio que é encarar o elemento conhecido sendo transformado e, quem sabe, destruído diante dos seus olhos, mergulhava na insistência do lembrar e puxava histórias cada vez mais antigas, minha tia-avó observava a sala e me confundia, vez e outra, com meu bisavô e com meu tio. Encarava o mundo que se revelava pequeno através da janela do seu cômodo final e comentava, cotidiana: “vai chover”. O clima, as nuvens, a chuva que nunca mais sentirá tocar sua pele, olhe lá o risco de uma pneumonia aos oitenta e dois anos, não é perigo que se corra, ela está muito bem agasalhada em sua cadeira de plástico, as árvores que balançam na rua deserta. Tudo o mais interessa a ela, não as reminiscências declamadas por minha avó: as histórias dos carnavais passados não interessam mais. De alguma forma, ela sabe que o passado está para sempre à sua mão. O perdido é o presente, e talvez isso lhe interesse mais. O futuro não existe.

Quando minha avó perguntou, com seu olhar de bondosa e augusta malícia, de quem mais ela lembrava, a resposta veio como um raio: “minha mãe”. Foi o mote para sua prima retomar as lembranças que só tinham efeito naqueles que não vivem no passado, ou naqueles que conhecem o conceito de passado. Para quem atravessou a ponte do tempo, ontem é hoje. Em determinado momento, revivendo as complicadas intrigas familiares da prima doente, minha avó fulminou: “O amor da vida dela não foi nenhum marido, foi Severino.” Virando-se para ela, indagou: “não foi?”. Mais uma vez o raio, agora um eco dos trovões da minha memória de menino: “É!”.

Ela lembrava de Severino, um namorado da juventude, mas não se recordava dos dois ex-maridos ou ao menos se importava com a notícia da morte deles. Ela não participou muito dos intrigantes métodos arqueológicos de minha avó. Depois da recordação do amor perdido da juventude, o amor proibido, talvez o primeiro amor?, minha avó diz que sim, ela olhou para mim e, percebendo algo que ninguém havia se dado conta, reclamou: “ele quer ir embora”.

Sim, eu queria ir embora, mas não pelo tédio de ouvir histórias há tanto amontoadas e perto de serem para sempre perdidas. Queria ir embora, e demonstrei a inquietação de alguma forma misteriosa, porque me imaginei no lugar dela. Percorrer para sempre os mesmos corredores e conquistar, de novo e de novo, os mesmos reinos, destronando os mesmos senhores. Lutar em vão com o esquecimento. Perceber a inutilidade do não sentir. Construir pontes elevadas por cima de toda vivência cotidiana posterior. O prazer do detalhe aumentado por óculos enormes. O coração que se expande até o infinito e para de bater. Ter oitenta e dois anos e dizer como um raio quando alguém perguntar “ele foi o amor da sua vida, não foi?”: É!

Defesa da lembrança

Hoje eu acordei entre tremores e choros presos. O sonho recorrente me assaltou mais uma vez. De novo nos reencontrávamos para debater, como senadores capitolinos, o destino do nosso passado. Sou assombrado pela lembrança do não ocorrido. Um ponto nevrálgico do meu novo cotidiano, do meu novo normal. Até quando deverei ser refém do passado que quer ser lembrado? O tempo passa sem fazer seu trabalho de sepultura total. Haverá sepultura total?

Uso um exemplo da minha própria caminhada (metáfora de-fi-ni-ti-va da vida). Há anos, oito, se não me engano nas contas, beijei pela primeira vez um rapaz. Escrevi “menino” e apaguei, mas a verdade é que éramos dois meninos, eu muito mais moço do que o outro, embora, em idade, fosse mais velho. Meus lábios meio fechados eram claras demonstrações do medo e da excitação. São histórias para outro momento, não vamos entrar aqui na trilha do desejo.

O ponto é: depois da difícil autoaceitação, eu me apaixonei pelo rapaz dos primeiros beijos. Na época, histriônico, achei que estava enlouquecido de amor. Foi com prazer mordaz que senti o filete de sangue manchar a corda que segurei com mais força do que a necessária. Achei que era amor e, de alguma maneira, foi um amor juvenil, importantíssimo no momento, mas poeira na história do tempo.

Anos se passaram e Ele aconteceu cheio de seus Antes, Durantes e Depois. O rapaz da boca macia há muito havia se perdido no breu das matas do inexplorado e habitava, como é preciso com todo primeiro amor (e ele o era, de fato, um primeiro amor de homem), o altar do idealizado. A vida acontece de formas divinas: inescrutáveis, inconsequentes e inadivinhadas. Reunimo-nos de novo. Foi um choque, admito, revê-lo depois de éons, mas foi um exercício de futuro. Meu coração nem farejou o animal adormecido. Nenhum intumescimento, apenas a ternura do Eu que fui. Foi o reencontro com a doçura da história que criei apenas na minha cabeça. Pobrezinho, o rapaz nem suspeitava das minhas lágrimas ou das músicas que lhe dediquei e que dedilhei com pastoral ingenuidade durante os anos de aparte.

Que exercício de futuro! Salvemos as proporções que o coração dá ao recém-acontecido-ainda-sonho-com-isso. Salvemos os anos de convivência e a formação de um caráter. Salvemos o castelo vazio e o vinho derramado. Salvemos e ignoremos as alfaias sagradas rasgadas no templo. Salvemos do chão o pó das sandálias. Salvemos a dor que escorre do ombro. Salvemos, enfim, todo o sentimento. Ele, o Ele eterno do hoje, também estará perdido? Ou daqui a oitenta e dois anos lembrarei dele com o mesmo afinco?

segunda-feira, 7 de maio de 2018

NOSSO ÚLTIMO POEMA


NOSSO ÚLTIMO POEMA

uso seu perfume
como quem morre
um pouco a cada dia
vingança só minha:
te matar
te mantendo vivo

há pouco chegou
aos meus ouvidos
a notícia da sua morte

e a sua morte,
para mim,
tem a aparência
do seu sorriso

a cama que você deitou
não mais existe
as sandálias que você deixou
não cabem mais nos meus pés
os livros que você me deu
estão brancos e nunca foram escritos

tudo o mais
é migalha na estrada
são restos por mim cuidados
a forma minha de frágil amparo
a forma de não te perder
num adeus continuado

mas seus pés são grandes
e curto é o caminho:
a notícia de sua morte
há pouco me deixou
sozinho

eu pousei a pena
porque tudo está consumado
e minha mão que foi seca
porta agora as bênçãos
que você ignorou

7/5

há que se ressaltar meu vago sobressalto quando te vi. o fim está consumado, não espero nenhum milagre, nem mesmo quero o fogo, não quero ser salvo. te vi de longe, e você estava frágil e fraco, mas rodeado, e isso parece muito bom, parece que está tudo bem, então segue o voo, ave sem asa, que eu guardo as penas que encontrar na estrada. o cansaço já é maior que qualquer coisa. hoje é o fim da navalha.

sábado, 7 de abril de 2018

ODE À FRIEZA


ODE À FRIEZA

é preciso coragem
para unir as mãos
e estrangular o amor
que ainda pede perdão.

é preciso ser guerreiro
linhagem ancestral
é preciso ser inteiro
para assinar o rito final.

é preciso não ter sangue
para cortar o velho coração
e não ousar ouvir nem um sibilo
nos despojos da compaixão.

é preciso saber o futuro
com os olhos presos no não
para ignorar os gemidos
e desbravar a solidão.

é preciso ter desejos
para navegar um novo chão
é preciso ser veleiro
quando o mar se torna grão.

é preciso ser perfeito
para enfrentar o grande amor
e com o ardor de outros tempos
dizer que acabou.

7/4
aniversário de morte.

domingo, 11 de março de 2018

RECAPITULAÇÃO III


Estou cansado de reviver apenas a tua morte, quando a nossa vida foi tão longa e criou-se vasta nas planícies de parreiras. Mas o que resta fazer, quando A Eternidade se aproximou em uma carruagem de fogo e espalhou labaredas como se fossem água? O fim foi maior que o nascimento de Deus. Por isso, estar preso na ausência, na falta, no cheiro do corpo morto, na impotência dos anjos caídos.

Não alcanço o mundo para onde você transferiu os palácios que um dia foram meus. E que contentamento sentia ao caminhar silencioso pelos conhecidos mármores. A arrogância dos sábios, construída no balanço tedioso do amor, flutuava como manto. Alojado na distância do tempo, posso enxergar que a terra é definitiva e a pedreira ocupa seu espaço no esquecimento com consciência e determinação. Luto para não ser mais um vencido pelo tempo, mas é um fracasso bíblico: filho de Jacó, não conseguirei ferir o Anjo, criatura que derrotou muitos outros maiores e melhores do que eu, habituados ao jogo de sedução do ruflar das asas por vezes demoníacas. O tempo é Deus e Deus há muito resolveu abandonar as cadeias limitantes da onipotência. Beberei eu também as águas de um Lethe envelhecido.

Não será o fim porque mesmo após o esquecimento do nome, o maior possível, segundo o poeta, você continuará existindo. Meus escritos não foram pintados na areia dos Tamoios, não foram cantados por Pã, não foram guardados por Jonas no ventre do Grande Peixe. Escrevi com sangue e com sangue vivi minhas verdades. Você se entranhou em mim com a paciência dos fios de Penélope, única metáfora possível, única mulher existente em mim. Assisti emocionado seu trabalho tal qual a Madalena curvou-se perante o Cristo, que era eu, com suas lágrimas e seus perfumes.

A distância agora é maior que nossa história. Meu coração já se acostuma ao cheiro de velho insensível do tempo, o grande algoz que todo amor destrói, até mesmo o Divino. Qual Deus esperará a salvação? Qual Deus tem paciência de encarar a sua própria criação? Qual Deus se submeterá às suas leis? Qual Deus morrerá como supõe o tempo? A solidão dos altares é a nossa resposta.

RECAPITULAÇÃO II


Nem mesmo o mais desterrado degradado passa seu cárcere em permanente contemplação. É daí que surgem os jogos mais perigosos da mente, a decisão entre a tentativa de não se afogar nos desvarios, no delírio, e usar a força dos braços cansados para boiar diante dos rastros do naufrágio. O jogo solitário, sem ramificações ou reverberações, se construiu no completo caos. A complexidade das tramas fez o próprio Dédalo se perder em seu labirinto. Não existe saída possível, pois ainda não nasceu Ícaro e o Sol não se decidiu pelo fim da humanidade. O jogo solitário acontece nas dimensões oferecidas: engolir água enquanto boia nos restos do navio.

Em algum momento, todas as lembranças que navegavam sutis foram se espalhando na inevitabilidade da acomodação. Restou uma viga de ferro, desafiando as leis e agindo como floco de ar nas ondas sedentas. É onde se agarra o velho marinheiro. Seu semblante calmo esconde a revolta humana: ele também está vulnerável ao tempo, ao renascimento proposto pela destruição. Em algum momento, a natureza lembrará de suas regras e o ferro condensará o peso das lágrimas. E o amor será feito de águas de naufrágio. Como todas: azul.

A quem a paciência recompensa? Ao tolo, ao sábio, ao filósofo habitando o antiespaço? Ao santo, ao homem, ao que persevera com os pés descalços? A paciência a alguém recompensa? Ou a paciência é uma trama urdida pela mente mais maliciosa de Deus, Aquele que é Todo Bom, para vencer o mais atento, o que espera a mentira diante de nenhum estímulo? É onde encontramos agora a impulsividade daquele que já foi poeta e agora é amargura. Nenhuma palavra a mais é necessária em uma terra árida e saturada de águas fundas.

O corpo morto vai cumprindo as ordens e se decompõe. A cada dia vai ficando mais diferente, irreconhecível, o cadáver rígido se fez dançante, temos até provas da sua diferença alegre, pegamos Deus com a boca na botija e todos os crentes se desfazem em lágrimas. Morreu Pã, nasceu algum menino em algum lugar estrelado, ainda não sabemos no que dará, se é que dará em algo, mas para sempre morreu aquele Outro. Avisam agora que não morreu na hora do beijo escondido, o pérfido beijo, o beijo pingando perigos, o beijo entre bocas decompostas, a água salobra. O amor morre aos poucos e por isso o corpo morto vai se decompondo em flores novas. Talvez eu seja o túmulo.

Nunca fingirei que você não foi meu primeiro amor. Nunca agirei como se você fosse um desconhecido, ainda que anos se passem e você não seja mais o pó das sombras das minhas lembranças.


terça-feira, 6 de março de 2018

RECAPITULAÇÃO I


A certeza da permanência do sentimento de morte se fixou na alma dele minutos depois do primeiro soco. Era uma luz clara no meio das brumas de um tempo ainda por nascer, um caminho completamente ignorado, mas sustentado por um prognóstico que nem mesmo os mais aferrados consoladores conseguiram apagar, tamanha a firmeza com que se agarrou ao passado. A solidão percorreria todos os caminhos que o sangue tanto conhece, passando lentamente pelos restos de lucidez e consciência que existiam no corpo machucado, no ombro sangrando, na respiração ofegante que convidava os maus espíritos a agirem livremente. Tudo ainda estava por desenrolar, as palavras por dizer e as lágrimas por chorar, mas o território da solidão tinha sido conquistado a duras penas em um trabalho silencioso, mas constante, pelo urso e pelo leão. O campo foi todo lavrado e o castelo há muito estava de pé, colossal. Não seria a quebra da ponte ou a morte da fênix que o desembaraçaria de uma influência eterna.

Assim ficou a partir do momento que as primeiras últimas palavras foram ditas. Outras seriam ouvidas em ocasiões diferentes, mas nunca mais seriam outras além daqueles cuspidas na fúria da decepção. O coração destruído lembrou-se do trono de gelo que há muito tinha aposentado quando o calor de um amor preguiçoso, mas perseverante, havia transformado toda a vida com sua dança enlouquecida. Não adiou o momento: baniu para sempre do seu afeto o leão em desgraça e as trancas seculares com que fechou o castelo jamais tornaram-se a abrir de novo.

Não mais o viu como era antes daquela noite, naquela mesma tarde onde as últimas palavras de amor foram trocadas diante do tédio de um tempo alongado. Para sempre estava perdido o olhar duradouro ou o afago contente. Preso na espiral de solidão que sabia eterna, ele ainda procurou o porto, o conhecido, o cais, mas as ruínas foram totais. Não existe, concluiu tardiamente, nenhuma ação possível fora do querer. Os atos mais impensados e imprevistos cumprem uma sina já muito estudada e pensada nos recônditos dos sonhos esquecidos nas manhãs da rotina. Toda a destruição, delenda cartago est, só foi possível porque os exércitos do caos construíram suas estratégias na sombra de uma paz de mentira. Houve tempo e houve o querer, mas a hipocrisia dos que utilizam a coroa impede a visão dos cacos de Jó. Não os queria, é claro, assim como não gostaria de não ter tenda, gados e família. O salto no escuro sem a possibilidade de falha. A libertação sem o preço, a porta aberta sem a chave, o grito anunciado, mas nunca escutado.

De qualquer forma, o que foi feito é o desvelo dos fios de um destino no qual apenas ele era o deus. A partir do momento que a porta foi aberta, os gemidos se perderam em um banheiro vazio e as escadas levaram apenas ao final, a partir desse momento estavam em lugares muito diferentes para nunca mais se encontrarem. Impossível até se reconhecerem, pois os atos mais vergonhosos do coração impossibilitam a visão da morte. Estavam ligados para sempre por um passado em comum, mas tão irreal e sem importância para um e glorificado ao ponto da mentira para outro. A única ligação ainda presente seria soterrada pelas lembranças fabricadas na pressa da dor. A obrigação com que os dois encararam o novo caminho assustou os mais atentos, porque estavam seguindo exatamente o mesmo percurso, mesmo que em dimensões diferentes e mesmo que assumissem máscaras opostas. O riso e o choro apontaram para nuvens disformes e tão poderosas que manteriam toda a ilha num desespero de névoa eterna. Enquanto os ventos não vêm.

Apesar de tudo, não morreu e teve que carregar o peso de um cadáver vivo nos ombros da consciência. Cada ato realizado, por mais ínfimo que fosse, carregava toda a esperança que se sabe vã e, por isso mesmo, luta a violência da existência. O acordar era um gesto dedicado a ser relembrado depois, num amor de dores e paz, que a imaginação pregava acontecer a qualquer momento. Os dias ainda se teceram na pior das atividades humanas: o esperar inútil. Não é preciso ser sábio nos meandros da vida para diagnosticar a inutilidade daquele método.  As duas pedras recolhidas no leito do rio do caminho do pé quebrado conservam-se como últimas relíquias dessa forma de pensar, rechaçada por demais pelos estudiosos das entranhas das aves. Não se reencontrarão, já que nem a matéria compartilha a mesma existência, mas permanecem como tentativas de um desespero amoroso que se mantém, mesmo que transfigurado. Ninguém sabe quando Deus vai enlouquecer.

Não são as datas comemorativas do calendário da morte, nem mesmo os grandes acontecimentos, como a conferência na esquina da rua, que abalam mais as frágeis raízes de uma respiração ofegante. São os dias tranquilos da desesperança, quando nenhuma saída se oferece e o consolidado sorri de satisfeito. O maior desespero, assim como a maior luxúria, é a tentação da resignação. A capitulação aguarda o momento, aquele simples abaixar de asas cansadas, para fincar bandeiras, reclamar direitos, desterrar a rota de retorno, uma estrada trabalhada todos os dias, mas que cada vez mais se enche de detritos, entulho e destroços. Ainda é cuidada com o afeto da loucura, mas é mesmo a palidez de suas tintas que assusta o jardineiro fiel. São caprichos do tempo que nem mesmo os grandes amores podem impedir. Provavelmente, a única saída possível seja a vitória pelo cansaço.