- guia de um ordinário vernáculo -


domingo, 11 de março de 2018

RECAPITULAÇÃO III


Estou cansado de reviver apenas a tua morte, quando a nossa vida foi tão longa e criou-se vasta nas planícies de parreiras. Mas o que resta fazer, quando A Eternidade se aproximou em uma carruagem de fogo e espalhou labaredas como se fossem água? O fim foi maior que o nascimento de Deus. Por isso, estar preso na ausência, na falta, no cheiro do corpo morto, na impotência dos anjos caídos.

Não alcanço o mundo para onde você transferiu os palácios que um dia foram meus. E que contentamento sentia ao caminhar silencioso pelos conhecidos mármores. A arrogância dos sábios, construída no balanço tedioso do amor, flutuava como manto. Alojado na distância do tempo, posso enxergar que a terra é definitiva e a pedreira ocupa seu espaço no esquecimento com consciência e determinação. Luto para não ser mais um vencido pelo tempo, mas é um fracasso bíblico: filho de Jacó, não conseguirei ferir o Anjo, criatura que derrotou muitos outros maiores e melhores do que eu, habituados ao jogo de sedução do ruflar das asas por vezes demoníacas. O tempo é Deus e Deus há muito resolveu abandonar as cadeias limitantes da onipotência. Beberei eu também as águas de um Lethe envelhecido.

Não será o fim porque mesmo após o esquecimento do nome, o maior possível, segundo o poeta, você continuará existindo. Meus escritos não foram pintados na areia dos Tamoios, não foram cantados por Pã, não foram guardados por Jonas no ventre do Grande Peixe. Escrevi com sangue e com sangue vivi minhas verdades. Você se entranhou em mim com a paciência dos fios de Penélope, única metáfora possível, única mulher existente em mim. Assisti emocionado seu trabalho tal qual a Madalena curvou-se perante o Cristo, que era eu, com suas lágrimas e seus perfumes.

A distância agora é maior que nossa história. Meu coração já se acostuma ao cheiro de velho insensível do tempo, o grande algoz que todo amor destrói, até mesmo o Divino. Qual Deus esperará a salvação? Qual Deus tem paciência de encarar a sua própria criação? Qual Deus se submeterá às suas leis? Qual Deus morrerá como supõe o tempo? A solidão dos altares é a nossa resposta.

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