- guia de um ordinário vernáculo -


domingo, 11 de março de 2018

RECAPITULAÇÃO II


Nem mesmo o mais desterrado degradado passa seu cárcere em permanente contemplação. É daí que surgem os jogos mais perigosos da mente, a decisão entre a tentativa de não se afogar nos desvarios, no delírio, e usar a força dos braços cansados para boiar diante dos rastros do naufrágio. O jogo solitário, sem ramificações ou reverberações, se construiu no completo caos. A complexidade das tramas fez o próprio Dédalo se perder em seu labirinto. Não existe saída possível, pois ainda não nasceu Ícaro e o Sol não se decidiu pelo fim da humanidade. O jogo solitário acontece nas dimensões oferecidas: engolir água enquanto boia nos restos do navio.

Em algum momento, todas as lembranças que navegavam sutis foram se espalhando na inevitabilidade da acomodação. Restou uma viga de ferro, desafiando as leis e agindo como floco de ar nas ondas sedentas. É onde se agarra o velho marinheiro. Seu semblante calmo esconde a revolta humana: ele também está vulnerável ao tempo, ao renascimento proposto pela destruição. Em algum momento, a natureza lembrará de suas regras e o ferro condensará o peso das lágrimas. E o amor será feito de águas de naufrágio. Como todas: azul.

A quem a paciência recompensa? Ao tolo, ao sábio, ao filósofo habitando o antiespaço? Ao santo, ao homem, ao que persevera com os pés descalços? A paciência a alguém recompensa? Ou a paciência é uma trama urdida pela mente mais maliciosa de Deus, Aquele que é Todo Bom, para vencer o mais atento, o que espera a mentira diante de nenhum estímulo? É onde encontramos agora a impulsividade daquele que já foi poeta e agora é amargura. Nenhuma palavra a mais é necessária em uma terra árida e saturada de águas fundas.

O corpo morto vai cumprindo as ordens e se decompõe. A cada dia vai ficando mais diferente, irreconhecível, o cadáver rígido se fez dançante, temos até provas da sua diferença alegre, pegamos Deus com a boca na botija e todos os crentes se desfazem em lágrimas. Morreu Pã, nasceu algum menino em algum lugar estrelado, ainda não sabemos no que dará, se é que dará em algo, mas para sempre morreu aquele Outro. Avisam agora que não morreu na hora do beijo escondido, o pérfido beijo, o beijo pingando perigos, o beijo entre bocas decompostas, a água salobra. O amor morre aos poucos e por isso o corpo morto vai se decompondo em flores novas. Talvez eu seja o túmulo.

Nunca fingirei que você não foi meu primeiro amor. Nunca agirei como se você fosse um desconhecido, ainda que anos se passem e você não seja mais o pó das sombras das minhas lembranças.


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