- guia de um ordinário vernáculo -


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

hora de amassar pergaminho 1

agora, apenas uma sensação de que ainda não encontrei minha voz. nos afazeres do cotidiano, me sinto mais cansado, mas menos triste. é a meditação do ofício, essa entrega de pensamento disforme. mas ainda não me encontro, fico rodeando o interior de mim, nem mais posso escrever poesia, quase já não creio em sua existência, outro dia cheguei a duvidar da arte em voz alta. tremo ainda assim, tenho pavor de virar cínico silencioso.

ainda não é hora de amassar pergaminhos. o dedo sem digital no arrasto do vidro, minhas mãos que um dia se abrirão tomadas de escritos, a textura e o encontro do sangue, fraqueza, vontade. a hipnose do contínuo, enganando em novas abas.

tenho estado confuso, vez em quando delírio que sou personagem de livro, visto figurino, espero narrador. parece então que me posso embalar meu país nos braços, e isso nem com meus pais posso estar descalço. a ilusão de rostos atentos engana o alcance da minha voz, não a mesma perdida e fechada atrás da porta, prestes a ser descoberta quando a escrita eterna cessar, mas a do mestre mentira, magister do dia a dia. não posso mudar nenhum rumo, contribuo porque parece que assim deve ser, chego a crer com violência interior, mas tenho a sina de duvidar de tudo, até mesmo de mim.

não me encontro, sempre reclamei disso em forma de poesia. e mais não digo: acho que tenho febre, mas deve ser cansaço.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

FLUTUO NO SILÊNCIO - e pur si muove!

às vezes é difícil rastrear a trilha que me trouxe aqui. ainda encontro corredores antigos com portas feridas, minha voz talvez esteja mais rouca, mas nova e contínua. mas de alguma maneira, estou aqui.

mais uma lição de humanidade que consigo perceber como os marcos de constantes boas vindas ao osso da estrutura, virei adulto. ensinaram-me a dissimulação como respiro de vida, são os hábitos de viver. fingir, é preciso mesmo fingir que capitulo, que cedo, que renuncio ao que escrevi! saber quando perdi o jogo dos subterfúgios se apresenta para mim como uma meditação: qual o homem que busco ser? minha teimosia em reclamar uma consciência e novidade nos meus passos: tenho medo de acovardar e sacrificar grãos de incenso, esses que não são mais acesos.

qual o homem que busco ser? essas coisas se apresentam na maneira como se costura o momento, as reações, sempre as mais sinceras. porque é esse o homem que quero ser: na verdade, e na liberdade, costurando meu caminho do jeito que creio. é a minha vida. não dissimulo o que escrevo, penso, falo. trabalho com a palavra viva da escrita. sou ator da literatura. negar o que a inquisição exige, acolher o silêncio obsequioso, penas e farsas, tudo comédia dessas vidas, privadas. é sobre o que eu falo, é sobre o que eu penso todo dia, nesses dias de crise e morte, e as tragédias das censuras, cátedra vazia, imagine o rombo no teto da sistina.

agora em ares de cronista: é de se reconhecer o que vemos nestas terras nos últimos anos, quando a palavra liberdade deixou de ser um grito boêmio dos sonhos de vida e passou a ser grito de marechais inexistentes, presos a um galopante rocinante sem ares algum, ideias de golpes rondando o refluxo da cegueira dos empanzinados. 

qual o homem que busco ser? o homem que sempre fui with this wind blowing, and this tide. quando experimentei o gosto de ser viúva arrastada pelo salão, pequena prostituta de mentes delirantes, sempre no arfar do pecado. fui muito feito de pedra, coberto de fuligem marinha, restos das nossas ações, nossos mariscos, sambaqui. fui muito vento sobre o vitral, ebó de semanas nas avenidas. permanente na escolha de ser minha linha.

serei sempre místico, mesmo quando descubro que sou o professorzinho idealista. talvez tenha sido também o caso do trisavó profundo do recôncavo. sei que ele não existe mais, ninguém jamais saberá de quando ele sentou sozinho e constatou que desaparecia. é como sinto a vida eterna. é o que costuramos na nossa mortalha de usar no dia a dia.

sábado, 21 de agosto de 2021

QUANDO EU ERA POETA

Quando eu era menino, e ávido descobridor de mim mesmo, escrevia poesia como moisés golpeando a pedra. os borbotões eram de mim, mas para afluentes. e foi nessa enseada estranha que navegaram tantas professoras. ouvindo e entendendo meu milagre, meu mistério, a voz mesma que nascia do bonito que me apresentavam. essas mulheres, sagradas parcas, ouviram meus ossos cheio de sal. 

a galeria de mulheres, madonas de quadro vivo, mães-fios, vejo ainda o cordato cordão de rubi e carmim. minha vó em suas histórias primeiras, minha mãe e suas recontagens penélopes, dona maria, seu cheiro de castigo, limão e milho. nete, solange, tânia, mariana, carolina, mulheres construtoras árduas de horizontes. essa ponta de toque da água quando antes do primeiro toque. as vasilhas de caruru entre os pequenos distribuída. o cheiro eterno de galinha e banana.

quando eu era menino e escrevia poesia todos os dias, incomodava minhas professoras com indagações místicas. pressentia o chão que poderia pisar com a minha língua. porque é de minha voz que me faço carpinteiro. elas foram falantes bosques, o suspeitar da fumaça pitonisa. mas uma me disse, costurando, que hoje não escrevia mais, o trabalho foi lhe secando. o bom da existência de deus é o temeroso que existe em olhar a realidade. os avisos são educação, por isso o ifá, delfos, jacuípe, meu vaticano.

nete tinha voz de velha, e ainda não era, mas me ensinou sobre deus, a raiva do desigual. foi quando aprendi a respeitar a revolta, a indignação que é hoje meu pão silêncio. quando eu era menino, rezei escadarias para atena, e via mesmo seu azul vestido andando em frente de mim. a delíria de ser rito. há outra, estava de olhos fechados, é possível que tenha sido maria, a de colônia, branca de pedra, mas celeste. a água que cai sobre todas as cabeças, mucunã. qualquer uma das minhas mães.

quando eu era menino, tremi quando meu chão estivesse seco, e por isso sempre nele derramei meus vinhos, abri covas nas catacumbas para derrubar leite e mel. resisto ainda que dispersas estejam as cinzas, dendê, mel e água benta.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

QUEM NOS DIRÁ MEMENTO MORI?

 QUEM NOS DIRÁ MEMENTO MORI?

agora que nos acostumamos com a catástrofe, é de entender como são tépidas as ocasiões dos grandes crimes. o exigido silêncio diante do absurdo torna possível o caminhar, já estamos todos tão cansados, o que esperar de nossa força? então esquecemos. é verdade que guarda-se a suspeita do que poderíamos ter sido se reagíssemos ao morticínio, o caminho que teria sido construído no passado sanguíneo. mas buscamos o chão após cada passo, e andar gritando é coisa que não se faz, pois assim nos ensinaram os que antes também calaram porque era assim mais fácil: ser tépido, nunca brusco, ir enrolando os trilhos, enredando o fio no dedo, vivendo porque é o que conhecemos.
e ninguém falará, antes que o terrível tenha acontecido, pois o nosso ofício é lamentar o vidro partido. é depois a hora de ver, nunca adivinhando o que em nossos olhos é físico. lembra-te apenas passageiramente das grandes ideias do dia a dia, a tia velha democracia, a morte dos que já esquecemos, o sofrimento que se unirá às queixas passadas. e ninguém nos dirá que também morremos ao aceitar o abuso por escrúpulo. é o que vejo nas notícias, nas falas miúdas, nas imposições nêmesis.
então entendo que é possível rir enquanto o mundo acaba, pois banho-me até a cintura de água tépida que escorre, única possível, da boca dos vizinhos. morno costume: passado passado. amanhã morreremos, ensimesmados.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

ASTROLÓGICO

 ASTROLÓGICO

sou como cabra aflita
erguida nos altos picos
teimosia solitária
erguendo por oposto
meus chifres ao céu 

e é rasa minha montanha
sambaqui sem lugar pra bandeira,
conquista é dançar marinho,
livre de patas fendidas,
o fogo do que não posso dizer
porque cresci, porque sou adulto,
e minhas loucuras esfarelam
minha língua viva,
bifurcada:

berrego minha cauda áspera,
piso forte no meu incerto chão
tenho lonjuras, aflito encaro de cima
o pantanoso esforço de amassar
meu próprio pão.

domingo, 18 de julho de 2021

registro:

registro:


meu interesse pela resposta verdadeira: é pelos outros seres que me confirmo. somos esse imenso desespero de luz. todos iguais pelas sobrancelhas, a hipnose quando nos debatemos com a cor do fim do dia. todas as mesmas experiências, expurgos, sangrias. nenhum futuro, nenhum dia. não sei como serei velho, a velha cor da poesia. sei que posso ter caminhos, a morte, a ausência sempre pressentida. a velhice, também na morte, é uma presença distinta, instintos de druida; o possível do olho ver, meu querer pela vida, por isso perseguir a sina. a emoção de mil instantes, minha tristeza repetida. tudo sentir em cor de céu, a nova experiência transida. analítico, divino, eu apenas não vejo ainda a luz infinita.

A CARNE DE MENTIRA, POESIA.

A CARNE DE MENTIRA, POESIA.

tenho tanta vontade de falar
apesar de voz pequena:
ficará, é meu consolo, qualquer registro
do que trepou como folha
no centro do meu pensamento, meu olho.

minha voz é minha vó,
minha figura de proa,
eu nos meandros das mentiras de menino,
e tanto vi, e tanto falei,
e tudo viam mentira,
quando era desejo de falar
o que eu queria, o que em poesia eu via,
meu isolado vinho, a voz falha,
histórias compridas.

tanta fragilidade em minha voz,
e tanta voz escorre nas mãos,
guiando compasso e leme, maestro de mim,
as mentiras de adulto dançando na luz do fim,
meus mal entendidos gestos,
sempre pensaram o mal aqui,
quando era tudo desejo de falar,
pintar minha boca de carmim.

quinta-feira, 15 de julho de 2021


há uma assembleia
no oco de que sou feito.
fatos como imagem de rio,
vozes que cruzo no dedo.
ouço murmúrios contidos,
medos são sempre absurdos.

de que ouvi da cruz
ficou atravessado 
como trave em meu braço
a ânsia de ser ouvido
pelos profetas de barro.
tudo o que eu penso
é sigilo, selo inquebrantável,
fico trêmulo, meio bêbado,
porque tudo escorre, naufrágio.

quem ouve o que não digo,
não sabe onde estou achado,
e tudo o que persigo
é livrar-me de ser vigiado.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

A CASA DOS VENTOS

A casa dos ventos provou-se uma verdadeira cela de monge, não cesso de dizer, espantado pelo cronometrado da hora. Seu chão frio será aquecido por madeira nova, antes mármore luzidio. Em muitos momentos sentei inerte, habitando a novidade do silêncio. Mudar de casa é um pouco como trocar de alma, ficam alguns pelo caminho, o exercício dos olhos ensina muita coisa. Agora preciso prosseguir na retomada. Fiquei no meio de uma ladeira durante alguns meses, o suficiente para conhecer e experimentar. Sua parede galeria, meu primeiro esconderijo de amplas janelas, meu ninho-livro, a companhia. Motivos para os quadros que não pintarei, mas é preciso listá-los aqui, é maneira de minha palavra ganhar a imagem que apenas anoto para não perder.

Os ventos da casa dos ventos encontraram-me num areal de grande silêncio. Ensimesmado, fui galgando o enfrentamento em sensações ardidas. Murro, ponta de faca, esses ditados que nos falam da dor que é ter que entender que a vida é muitas vezes vivida pelo enfrentamento. Queria chamar de dor, mas é raiva. Pelas feridas que me causaram, violentos, e que não se diluíram pela misericórdia dos amigos. Cada dia me trouxe a realização do que eu sempre soube: Deus me ouve, e se quis ser monge sem votos, é na letargia tediosa que encontro a insuficiência da minha santidade abdicada. Não orei com fervor, trabalhei languidamente, amei sem hesitação de velho, mas reticência de novo. Empoeirei imagens dos meus sonhos. A vida não existia.

E ainda não existe, mas a ampulheta girou o sol em suas sombras, e me encontro diante do mar.

Fui feliz, e estou submerso nos meus templos das graças. Fui agradecer na praia. Bebi e comi do meu passo trôpego (ay deus e o é) e senti a liberdade para gritar, como um braço novo, um pensar árvore, frondosamente balouçando. Já disse que mudar de casa é um pouco como mudar de alma, e essa experimentei o tempo que necessitei. E é só. Posso cantar pra subir. 

segunda-feira, 28 de junho de 2021

ESCARLATE

ESCARLATE 

doeu no ardor do medo
todo homem que já amei,
mas ainda amo, e valente.

deus não me disse nada,
mas ainda me vejo escondido
na delícia caseira dos domingos.

a liberdade que me alcançaram
ainda tremula por acontecer
fogos azedos, indignidade silenciosa.

não é meu todo corpo despedaçado,
mas em mim existem as vozes
que precisam ser saltadas.

hoje me falam de orgulho, sub-reptícios,
e eu desconfio de alguma coisa,
beijando acalorado o meu amado.

percebendo as cicatrizes de viver, recentes,
contabilidade desse impotente ato de revolta,
vou esperando, tão viado, a justiça iridescente.