- guia de um ordinário vernáculo -


sábado, 21 de agosto de 2021

QUANDO EU ERA POETA

Quando eu era menino, e ávido descobridor de mim mesmo, escrevia poesia como moisés golpeando a pedra. os borbotões eram de mim, mas para afluentes. e foi nessa enseada estranha que navegaram tantas professoras. ouvindo e entendendo meu milagre, meu mistério, a voz mesma que nascia do bonito que me apresentavam. essas mulheres, sagradas parcas, ouviram meus ossos cheio de sal. 

a galeria de mulheres, madonas de quadro vivo, mães-fios, vejo ainda o cordato cordão de rubi e carmim. minha vó em suas histórias primeiras, minha mãe e suas recontagens penélopes, dona maria, seu cheiro de castigo, limão e milho. nete, solange, tânia, mariana, carolina, mulheres construtoras árduas de horizontes. essa ponta de toque da água quando antes do primeiro toque. as vasilhas de caruru entre os pequenos distribuída. o cheiro eterno de galinha e banana.

quando eu era menino e escrevia poesia todos os dias, incomodava minhas professoras com indagações místicas. pressentia o chão que poderia pisar com a minha língua. porque é de minha voz que me faço carpinteiro. elas foram falantes bosques, o suspeitar da fumaça pitonisa. mas uma me disse, costurando, que hoje não escrevia mais, o trabalho foi lhe secando. o bom da existência de deus é o temeroso que existe em olhar a realidade. os avisos são educação, por isso o ifá, delfos, jacuípe, meu vaticano.

nete tinha voz de velha, e ainda não era, mas me ensinou sobre deus, a raiva do desigual. foi quando aprendi a respeitar a revolta, a indignação que é hoje meu pão silêncio. quando eu era menino, rezei escadarias para atena, e via mesmo seu azul vestido andando em frente de mim. a delíria de ser rito. há outra, estava de olhos fechados, é possível que tenha sido maria, a de colônia, branca de pedra, mas celeste. a água que cai sobre todas as cabeças, mucunã. qualquer uma das minhas mães.

quando eu era menino, tremi quando meu chão estivesse seco, e por isso sempre nele derramei meus vinhos, abri covas nas catacumbas para derrubar leite e mel. resisto ainda que dispersas estejam as cinzas, dendê, mel e água benta.

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