- guia de um ordinário vernáculo -


terça-feira, 16 de março de 2021

POEMA ÓBVIO

POEMA ÓBVIO

eu vos saúdo,

ó mortes desnecessárias

eco, vagula consciência

almas brasileiras tão pouco pranteadas

nesta calma hecatombe primária


faço-me sumo sacerdote irado e imberbe,

nenhuma cinza sobre as minhas barbas,

e toco vossos sinos várias vezes na vigília

lamentando vosso número, que também é nosso

íngreme cemitério de carcaças insepultas


hoje fostes duas mil oitocentos e quarenta e duas

- mas enquanto não me incluem na conta – pensam todos

ainda respiramos nas viradas desconcertantes das relojoarias suicidas


mas amanhã posso compor parcos caracteres

pois vamos morrendo e não somos cordeiros

não há altar, pão ou incensados fumaceiros

e não nos lamentam como se fossemos

os cremados nos fornos de auschwitz


um dia houve que quedamos sob

os bombardeados mortos, respeitáveis

de hiroshima e nagazaki e guernica,

antigas guerras e possíveis explosões


um dia houve que fitamos o mar

pensativos em tsunamis e trovões

e não me esqueço das não poucas águas

que lavaram nossos terreiros

por afundados barcos, tumbeiros esquecidos

e o silêncio que atravessa nosso umbigo


mas somam hoje duzentas e oitenta mil apressadas travessias

nos secos leitos de nossos esfarelados olhos

e fingimos tão profundamente a urgência do medo e da vida

que andamos quase alegremente como andam os que não

sentem as dores das guerras


insones, silentes, ensimesmados, indignados

não há resto de voz ou paciência de poesia


nos envelhece a raiva pela desfaçatez dos déspotas

e nada cresce em nós enquanto não estamos na lista 


dos que aguardam resignados

o fim dos próprios tempos.


16/3