POEMA ÓBVIO
eu vos saúdo,
ó mortes desnecessárias
eco, vagula consciência
almas brasileiras tão pouco pranteadas
nesta calma hecatombe primária
faço-me sumo sacerdote irado e imberbe,
nenhuma cinza sobre as minhas barbas,
e toco vossos sinos várias vezes na vigília
lamentando vosso número, que também é nosso
íngreme cemitério de carcaças insepultas
hoje fostes duas mil oitocentos e quarenta e duas
- mas enquanto não me incluem na conta – pensam todos
ainda respiramos nas viradas desconcertantes das relojoarias suicidas
mas amanhã posso compor parcos caracteres
pois vamos morrendo e não somos cordeiros
não há altar, pão ou incensados fumaceiros
e não nos lamentam como se fossemos
os cremados nos fornos de auschwitz
um dia houve que quedamos sob
os bombardeados mortos, respeitáveis
de hiroshima e nagazaki e guernica,
antigas guerras e possíveis explosões
um dia houve que fitamos o mar
pensativos em tsunamis e trovões
e não me esqueço das não poucas águas
que lavaram nossos terreiros
por afundados barcos, tumbeiros esquecidos
e o silêncio que atravessa nosso umbigo
mas somam hoje duzentas e oitenta mil apressadas travessias
nos secos leitos de nossos esfarelados olhos
e fingimos tão profundamente a urgência do medo e da vida
que andamos quase alegremente como andam os que não
sentem as dores das guerras
insones, silentes, ensimesmados, indignados
não há resto de voz ou paciência de poesia
nos envelhece a raiva pela desfaçatez dos déspotas
e nada cresce em nós enquanto não estamos na lista
dos que aguardam resignados
o fim dos próprios tempos.
16/3
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