- guia de um ordinário vernáculo -


quarta-feira, 7 de abril de 2021

CRÔNICA 1

Não é tempo de poesia. A poesia não pode explicar nada do que estamos sentindo agora.  Poesia é memória, e nosso tempo composto de absurdo precisa ser explicado. É tempo de prosa, e prosa óbvia, prosa prova, prosa didática, prosa professor. É tempo de prosa, pelo menos é assim que tem acontecido aqui.

A raiva é um sentimento constante, todos os dias. Raiva de tanta morte, raiva dos crimes que nos fazem, raiva da passividade, raiva do medo, raiva da raiva, raiva da impotência, raiva da esperança. Como posso ousar ter esperanças, sabendo o que sei, sentindo o que me obrigam a sentir? Meu povo, essa gente que me é corrente invisível, atravessados todos no que eu também sou, nossa guarda compartilhada da esperança que era o Brasil, desaparece. Como minhas mãos são pequenas, como meus gestos morrem como borboletas logo ali! As ondas que gero com minhas palavras não mudam nem mesmo o meu próprio comportamento. Mas ainda tenho esperanças.

Ousam nos exigir continuidade, como se encíclicas fôssemos. É preciso falar, logar, clicar, postar, é preciso corrigir, sorrir, fechar, suportar, é preciso ouvir, fazer, perder. Tudo continuar. 

Meu trabalho tem sido difícil. Tenho cinco anos de sala de aula. De tudo que é ser professor, a certeza do ofício, a dignidade da persistência, toda essa dureza insistente, tudo era epifania na sala de aula, a relação entre eu e os alunos, a minha fé, a minha delícia, o meu delírio de pensar acompanhado. Tudo isso foi-me tirado, é consequência da pandemia, agora estamos todos em casa, e essa casa também é trabalho, não vemos mais nenhuma fronteira. Uma tarefa coletiva virou uma solidão arrasadora. Minha imagem chega a eles em ondas. E estão todos cansados.

Nós estamos cansados, e eu estou cansado de tanta coisa, e nossos alunos também. Adolescentes que não estão tendo tantas experiências, como podemos esperar qualquer coisa além de uma resposta hesitante? São tempos de guerra, era caso de uma amorosa disciplina, mas não temos esse espírito no Brasil. Poderíamos ter, mas aí são minhas vontades de desejar que possamos existir. Não preciso imaginar o quanto é difícil, pois para mim cada dia é o meio do Atlântico.

Não deixo de estar solitário, apesar da consciência. Talvez encontre um pouco de desespero no meu cansaço, na minha apatia, na minha tristeza (por que não dizer?): tristeza grande, e tenho medo de quando começar a chover.

E ainda existem as injustiças íntimas, um espinho no meu olho, sempre me obrigando a ter mais coragem, mais vontade de falar "existo". Vinte e oito anos, há dez anos me assumi. Hoje em dia não se fala mais em se assumir (ou assim li em algum lugar), mas eu me assumi para lutar ferozmente pela minha ilha. Ainda hoje, depois de tanta briga por dignidade, existem perseguições pelo que escrevo, pelo que falo, pelo que sou. Há quem ache que pode questionar quem eu sou. Como eu poderia imaginar que a liberdade existe nessas terras arrasadas? Símbolos dos tempos também aqui. 

A pobreza cresce no reino da morte, mas por enquanto ainda sou testemunha viva.

Fico com a prosa, a poesia anda envergonhada, há muito o que explicar, e é tempo de registrar. A recordação virá, talvez, depois.

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