- guia de um ordinário vernáculo -


domingo, 11 de abril de 2021

CRÔNICA 2

 Há que se esconder a raiva, ou ignorar os pedidos de socorro que todos damos silenciosamente, pois é proibido gritar no cotidiano dos dias imóveis.

Caminhamos, pois é necessário caminhar, assim nos ensinaram quando abriram os caminhos de calcário vermelho e fizeram nossas pernas fortes para a queda e para a pedra.

Amanhã retorno aos ritos cotidianos do ganhar o pão que me alimentará até cessar a necessidade de ser carne e corpo. Ressinto-me das pequenas humilhações que o ofício impõe. Sinto como uma espinha de peixe, e não há vela santa que possa me desengasgar da arrogância que os clientes da educação levantam sem pejo. Fui lenhado em cruz por levantar bandeira. Fui taxado de comunista por refletir cotidianamente sobre a injustiça da nossa vida. Que outra coisa eu posso fazer? além de falar, falar e ocasionalmente escrever, mesmo que não me leiam, mesmo que me apagam, mesmo que não haja baú para minhas apalavras?

Consequências da solidão. Há algo de prisioneiro na minha obstinação. Quero ficar vivo, e pressinto que poderei vencer, como tantos outros desesperançados, este momento iracundo. Transito entre os círculos do inferno destinados ao furibundos, longe de qualquer resignação, suntuosa palavra. 

Quando corro pela orla da Barra, encontro comportamentos mesquinhos nos rostos limpos, mesmo em tardes pandêmicas. Como não ter raiva, em todo lugar, em todo tempo? Por mim, por aqueles que morrem, por aqueles sem condições de viver.

Vamos sendo afligidos todos os dias por notícias terríveis. O bolso aperta, e eu tenho tantos sonhos. Tenho vergonha da situação que nos colocaram. E acima de tudo, tenho raiva, tenho raiva. Se eu pudesse transfigurar minha raiva em ação, e essa ação nos poupasse lágrimas! Mas não existem milagres neste mundo, cada mais percebo. Não há justiça, também. Há caos e coincidências, providências do universo. Por enquanto, tenho que transformar a raiva em paciência.

Tudo passará, e aqui não rezo cristiano. Tudo passará porque nenhum de nós poderá se adiar indefinidamente. Mesquinhos, nossa corrida em calcários vermelhos não nos levará muito longe.

São os tempos, são os tempos.
Fomos felizes e as paredes nos dão prova da esperança. 

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