- guia de um ordinário vernáculo -


terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A CAMINHADA DO SOL

A CAMINHADA DO SOL

a areia fina presa
como diamante
entre os dedos tortos

o suor do trabalho pesado
de se livrar de um peso morto
o abandonar de um velho corpo
ampulheta cintilante e febril

o rastro de sangue
me embaraça ainda os olhos
mas pressinto a pele marmórea
lento na solenidade de sua funda

a sua voz é uma busca
pelo ar que trago na bilha seca
meu corpo de areia
indo de encontro ao novo

lento esperar
pelo morejar de uma montanha
que um dia reinou vulcão
e hoje dorme o sono do pejo
a paciência bíblica
dos cacos de jó

cintilam as minhas
cascas de pedra
nas mãos macias
que constroem

a biblioteca das águas.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

ESSAS COISAS

ESSAS COISAS

desalinhastes um mundo por tantos anos
e agora negas as últimas palavras não ditas
capricho dos ditadores que sempre levaram
o amor fechado no punho
e o punho se dizia de ferro

essa palavra minha tem o poder
de retornar o tempo às caixas abertas
e você costurando os dentes
sentado num trono de ordens
impávido, impaciente e Pai
o cadáver da rigidez

os ombros sangram água
mares escorrem pelo corpo seco
e você observa as velas apagarem
movimentando moinhos e ajuntando ventos
e as águas destroem o mundo

as palavras governam as ilhas
e a falta de voz não me deixa andar
aguardar algum deus aparecer
e me salvar das suas garras duras e frias
é admitir que o apocalipse está aqui
com suas trombetas e flechas
e o corpo dos santos nas trevas

as flechas nunca enviadas
as feridas nunca fechadas
nossas bocas são relicários esquecidos
e o coração está parado
capricho dos deuses que sempre levaram
o amor fechado no ferro
e o ferro feria o punho

com que direito,
imperador das minhas dores,
governas meus medos com
fogo e destruição
se ontem reinavas Titã
sobre as águas do degelo
tácita traição
dos amores que sempre levaram
o ferro fechado no amor
e o amor se dizia de ferro

mas acabou?

quinta-feira, 6 de julho de 2017

LINHAGEM

LINHAGEM

escrevo poesia
como quem bebe vinho
aquele outro, o sangue
a taça cheia de carne

escrevo
como se o vinho fosse água
e minhas águas são uma manjedoura

escrevo como se fosse fonte
e pedras rolassem
dos meus dedos quietos
porque eles repousam
no meu colo
quando eu sento como uma
Grande Mãe
e as palavras me sugam
como meus filhos

escrevo poesia
como se o último gole de vinho
fosse diferente do primeiro
e a ânsia que resvala em minha boca
fosse a resposta definitiva
cruel e sincera
revelado que minha taça
são meus ossos
e eu bebo a mim mesmo.