- guia de um ordinário vernáculo -


terça-feira, 6 de março de 2018

RECAPITULAÇÃO I


A certeza da permanência do sentimento de morte se fixou na alma dele minutos depois do primeiro soco. Era uma luz clara no meio das brumas de um tempo ainda por nascer, um caminho completamente ignorado, mas sustentado por um prognóstico que nem mesmo os mais aferrados consoladores conseguiram apagar, tamanha a firmeza com que se agarrou ao passado. A solidão percorreria todos os caminhos que o sangue tanto conhece, passando lentamente pelos restos de lucidez e consciência que existiam no corpo machucado, no ombro sangrando, na respiração ofegante que convidava os maus espíritos a agirem livremente. Tudo ainda estava por desenrolar, as palavras por dizer e as lágrimas por chorar, mas o território da solidão tinha sido conquistado a duras penas em um trabalho silencioso, mas constante, pelo urso e pelo leão. O campo foi todo lavrado e o castelo há muito estava de pé, colossal. Não seria a quebra da ponte ou a morte da fênix que o desembaraçaria de uma influência eterna.

Assim ficou a partir do momento que as primeiras últimas palavras foram ditas. Outras seriam ouvidas em ocasiões diferentes, mas nunca mais seriam outras além daqueles cuspidas na fúria da decepção. O coração destruído lembrou-se do trono de gelo que há muito tinha aposentado quando o calor de um amor preguiçoso, mas perseverante, havia transformado toda a vida com sua dança enlouquecida. Não adiou o momento: baniu para sempre do seu afeto o leão em desgraça e as trancas seculares com que fechou o castelo jamais tornaram-se a abrir de novo.

Não mais o viu como era antes daquela noite, naquela mesma tarde onde as últimas palavras de amor foram trocadas diante do tédio de um tempo alongado. Para sempre estava perdido o olhar duradouro ou o afago contente. Preso na espiral de solidão que sabia eterna, ele ainda procurou o porto, o conhecido, o cais, mas as ruínas foram totais. Não existe, concluiu tardiamente, nenhuma ação possível fora do querer. Os atos mais impensados e imprevistos cumprem uma sina já muito estudada e pensada nos recônditos dos sonhos esquecidos nas manhãs da rotina. Toda a destruição, delenda cartago est, só foi possível porque os exércitos do caos construíram suas estratégias na sombra de uma paz de mentira. Houve tempo e houve o querer, mas a hipocrisia dos que utilizam a coroa impede a visão dos cacos de Jó. Não os queria, é claro, assim como não gostaria de não ter tenda, gados e família. O salto no escuro sem a possibilidade de falha. A libertação sem o preço, a porta aberta sem a chave, o grito anunciado, mas nunca escutado.

De qualquer forma, o que foi feito é o desvelo dos fios de um destino no qual apenas ele era o deus. A partir do momento que a porta foi aberta, os gemidos se perderam em um banheiro vazio e as escadas levaram apenas ao final, a partir desse momento estavam em lugares muito diferentes para nunca mais se encontrarem. Impossível até se reconhecerem, pois os atos mais vergonhosos do coração impossibilitam a visão da morte. Estavam ligados para sempre por um passado em comum, mas tão irreal e sem importância para um e glorificado ao ponto da mentira para outro. A única ligação ainda presente seria soterrada pelas lembranças fabricadas na pressa da dor. A obrigação com que os dois encararam o novo caminho assustou os mais atentos, porque estavam seguindo exatamente o mesmo percurso, mesmo que em dimensões diferentes e mesmo que assumissem máscaras opostas. O riso e o choro apontaram para nuvens disformes e tão poderosas que manteriam toda a ilha num desespero de névoa eterna. Enquanto os ventos não vêm.

Apesar de tudo, não morreu e teve que carregar o peso de um cadáver vivo nos ombros da consciência. Cada ato realizado, por mais ínfimo que fosse, carregava toda a esperança que se sabe vã e, por isso mesmo, luta a violência da existência. O acordar era um gesto dedicado a ser relembrado depois, num amor de dores e paz, que a imaginação pregava acontecer a qualquer momento. Os dias ainda se teceram na pior das atividades humanas: o esperar inútil. Não é preciso ser sábio nos meandros da vida para diagnosticar a inutilidade daquele método.  As duas pedras recolhidas no leito do rio do caminho do pé quebrado conservam-se como últimas relíquias dessa forma de pensar, rechaçada por demais pelos estudiosos das entranhas das aves. Não se reencontrarão, já que nem a matéria compartilha a mesma existência, mas permanecem como tentativas de um desespero amoroso que se mantém, mesmo que transfigurado. Ninguém sabe quando Deus vai enlouquecer.

Não são as datas comemorativas do calendário da morte, nem mesmo os grandes acontecimentos, como a conferência na esquina da rua, que abalam mais as frágeis raízes de uma respiração ofegante. São os dias tranquilos da desesperança, quando nenhuma saída se oferece e o consolidado sorri de satisfeito. O maior desespero, assim como a maior luxúria, é a tentação da resignação. A capitulação aguarda o momento, aquele simples abaixar de asas cansadas, para fincar bandeiras, reclamar direitos, desterrar a rota de retorno, uma estrada trabalhada todos os dias, mas que cada vez mais se enche de detritos, entulho e destroços. Ainda é cuidada com o afeto da loucura, mas é mesmo a palidez de suas tintas que assusta o jardineiro fiel. São caprichos do tempo que nem mesmo os grandes amores podem impedir. Provavelmente, a única saída possível seja a vitória pelo cansaço.

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