DEFESAS
MEMÓRIA
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
Sei que a minha história não interessa a ninguém.
Essa consciência me dá liberdade de contá-la como me
aprouver.
Hoje eu acompanhei minha avó em
uma visita a sua prima mais velha. Essa minha tia-avó sofre há 12 anos de
demência. A figura que contemplei nada me lembra a personagem que criei em
minha cabeça durante as visitas da infância ou através das histórias contadas mil
vezes pela narrativa envolvente de minha avó. A ideia vaga que tenho dela se
esfumaça e contemplo a figura pequena sentada na cadeira. Um quadro melancólico,
a senilidade, a fragilidade de um corpo que antes se apresentava robusto e alto,
a voz vacilante quando era poderosa, potente, um trovão que se ouvia atravessando
a casa declamando seus dois bordões favoritos (“um espetáculo” e “porra!”), o
grotesco terno de uma boca cheio da ausência de dentes que esconde a conhecida
beleza de antigamente, beleza que fechava comércios, beleza que inspirava
luxúria, sensualidade que arrebatou poderosos. Tudo isso, e toda a vida além,
os sofrimentos conjugais, as violências, as belezas da prole, a satisfação da
autonomia, tudo aquilo virou um presente que ela não recorda. Ou pelo menos não
recorda todo o tempo. As acompanhantes nos dizem que, por vezes, ela começa a
recitar um rosário de memórias. São ilhas cada vez mais esparsas, deslocadas
para longe pelos gritos histéricos da demência. É o ocaso, o cheiro de velhice,
o memento mori do Imperador, a
lembrança do futuro. Muito ela esqueceu, mas não esqueceu do amor.
Isso me impressionou. Enquanto minha
avó, talvez constrangida pelo desafio que é encarar o elemento conhecido sendo
transformado e, quem sabe, destruído diante dos seus olhos, mergulhava na insistência
do lembrar e puxava histórias cada vez mais antigas, minha tia-avó observava a
sala e me confundia, vez e outra, com meu bisavô e com meu tio. Encarava o
mundo que se revelava pequeno através da janela do seu cômodo final e
comentava, cotidiana: “vai chover”. O clima, as nuvens, a chuva que nunca mais
sentirá tocar sua pele, olhe lá o risco de uma pneumonia aos oitenta e dois
anos, não é perigo que se corra, ela está muito bem agasalhada em sua cadeira
de plástico, as árvores que balançam na rua deserta. Tudo o mais interessa a
ela, não as reminiscências declamadas por minha avó: as histórias dos carnavais
passados não interessam mais. De alguma forma, ela sabe que o passado está para
sempre à sua mão. O perdido é o presente, e talvez isso lhe interesse mais. O
futuro não existe.
Quando minha avó perguntou, com
seu olhar de bondosa e augusta malícia, de quem mais ela lembrava, a resposta veio
como um raio: “minha mãe”. Foi o mote para sua prima retomar as lembranças que só
tinham efeito naqueles que não vivem no passado, ou naqueles que conhecem o
conceito de passado. Para quem atravessou a ponte do tempo, ontem é hoje. Em
determinado momento, revivendo as complicadas intrigas familiares da prima doente,
minha avó fulminou: “O amor da vida dela não foi nenhum marido, foi Severino.”
Virando-se para ela, indagou: “não foi?”. Mais uma vez o raio, agora um eco dos
trovões da minha memória de menino: “É!”.
Ela lembrava de Severino, um
namorado da juventude, mas não se recordava dos dois ex-maridos ou ao menos se
importava com a notícia da morte deles. Ela não participou muito dos
intrigantes métodos arqueológicos de minha avó. Depois da recordação do amor perdido
da juventude, o amor proibido, talvez o primeiro amor?, minha avó diz que sim, ela
olhou para mim e, percebendo algo que ninguém havia se dado conta, reclamou: “ele
quer ir embora”.
Sim, eu queria ir embora, mas não
pelo tédio de ouvir histórias há tanto amontoadas e perto de serem para sempre
perdidas. Queria ir embora, e demonstrei a inquietação de alguma forma
misteriosa, porque me imaginei no lugar dela. Percorrer para sempre os mesmos
corredores e conquistar, de novo e de novo, os mesmos reinos, destronando os
mesmos senhores. Lutar em vão com o esquecimento. Perceber a inutilidade do não
sentir. Construir pontes elevadas por cima de toda vivência cotidiana
posterior. O prazer do detalhe aumentado por óculos enormes. O coração que se
expande até o infinito e para de bater. Ter oitenta e dois anos e dizer como um
raio quando alguém perguntar “ele foi o amor da sua vida, não foi?”: É!
Defesa da lembrança
Hoje eu acordei entre tremores e
choros presos. O sonho recorrente me assaltou mais uma vez. De novo nos reencontrávamos
para debater, como senadores capitolinos, o destino do nosso passado. Sou
assombrado pela lembrança do não ocorrido. Um ponto nevrálgico do meu novo
cotidiano, do meu novo normal. Até quando deverei ser refém do passado que quer
ser lembrado? O tempo passa sem fazer seu trabalho de sepultura total. Haverá
sepultura total?
Uso um exemplo da minha própria
caminhada (metáfora de-fi-ni-ti-va da vida). Há anos, oito, se não me engano
nas contas, beijei pela primeira vez um rapaz. Escrevi “menino” e apaguei, mas
a verdade é que éramos dois meninos, eu muito mais moço do que o outro, embora,
em idade, fosse mais velho. Meus lábios meio fechados eram claras demonstrações
do medo e da excitação. São histórias para outro momento, não vamos entrar aqui
na trilha do desejo.
O ponto é: depois da difícil autoaceitação,
eu me apaixonei pelo rapaz dos primeiros beijos. Na época, histriônico, achei
que estava enlouquecido de amor. Foi com prazer mordaz que senti o filete de
sangue manchar a corda que segurei com mais força do que a necessária. Achei
que era amor e, de alguma maneira, foi um amor juvenil, importantíssimo no momento,
mas poeira na história do tempo.
Anos se passaram e Ele aconteceu
cheio de seus Antes, Durantes e Depois. O rapaz da boca macia há muito havia se
perdido no breu das matas do inexplorado e habitava, como é preciso com todo
primeiro amor (e ele o era, de fato, um primeiro amor de homem), o altar do
idealizado. A vida acontece de formas divinas: inescrutáveis, inconsequentes e
inadivinhadas. Reunimo-nos de novo. Foi um choque, admito, revê-lo depois de
éons, mas foi um exercício de futuro. Meu coração nem farejou o animal
adormecido. Nenhum intumescimento, apenas a ternura do Eu que fui. Foi o
reencontro com a doçura da história que criei apenas na minha cabeça.
Pobrezinho, o rapaz nem suspeitava das minhas lágrimas ou das músicas que lhe
dediquei e que dedilhei com pastoral ingenuidade durante os anos de aparte.
Que exercício de futuro! Salvemos
as proporções que o coração dá ao recém-acontecido-ainda-sonho-com-isso.
Salvemos os anos de convivência e a formação de um caráter. Salvemos o castelo
vazio e o vinho derramado. Salvemos e ignoremos as alfaias sagradas rasgadas no
templo. Salvemos do chão o pó das sandálias. Salvemos a dor que escorre do
ombro. Salvemos, enfim, todo o sentimento. Ele, o Ele eterno do hoje, também estará
perdido? Ou daqui a oitenta e dois anos lembrarei dele com o mesmo afinco?