A certeza da permanência do
sentimento de morte se fixou na alma dele minutos depois do primeiro soco. Era
uma luz clara no meio das brumas de um tempo ainda por nascer, um caminho
completamente ignorado, mas sustentado por um prognóstico que nem mesmo os mais
aferrados consoladores conseguiram apagar, tamanha a firmeza com que se agarrou
ao passado. A solidão percorreria todos os caminhos que o sangue tanto conhece,
passando lentamente pelos restos de lucidez e consciência que existiam no corpo
machucado, no ombro sangrando, na respiração ofegante que convidava os maus
espíritos a agirem livremente. Tudo ainda estava por desenrolar, as palavras
por dizer e as lágrimas por chorar, mas o território da solidão tinha sido
conquistado a duras penas em um trabalho silencioso, mas constante, pelo urso e
pelo leão. O campo foi todo lavrado e o castelo há muito estava de pé,
colossal. Não seria a quebra da ponte ou a morte da fênix que o desembaraçaria
de uma influência eterna.
Assim ficou a partir do momento
que as primeiras últimas palavras foram ditas. Outras seriam ouvidas em
ocasiões diferentes, mas nunca mais seriam outras além daqueles cuspidas na
fúria da decepção. O coração destruído lembrou-se do trono de gelo que há muito
tinha aposentado quando o calor de um amor preguiçoso, mas perseverante, havia
transformado toda a vida com sua dança enlouquecida. Não adiou o momento: baniu
para sempre do seu afeto o leão em desgraça e as trancas seculares com que
fechou o castelo jamais tornaram-se a abrir de novo.
Não mais o viu como era antes
daquela noite, naquela mesma tarde onde as últimas palavras de amor foram
trocadas diante do tédio de um tempo alongado. Para sempre estava perdido o
olhar duradouro ou o afago contente. Preso na espiral de solidão que sabia eterna,
ele ainda procurou o porto, o conhecido, o cais, mas as ruínas foram totais.
Não existe, concluiu tardiamente, nenhuma ação possível fora do querer. Os atos
mais impensados e imprevistos cumprem uma sina já muito estudada e pensada nos
recônditos dos sonhos esquecidos nas manhãs da rotina. Toda a destruição, delenda cartago est, só foi possível porque os exércitos do caos construíram suas
estratégias na sombra de uma paz de mentira. Houve tempo e houve o querer, mas
a hipocrisia dos que utilizam a coroa impede a visão dos cacos de Jó. Não os
queria, é claro, assim como não gostaria de não ter tenda, gados e família. O
salto no escuro sem a possibilidade de falha. A libertação sem o preço, a porta
aberta sem a chave, o grito anunciado, mas nunca escutado.
De qualquer forma, o que foi
feito é o desvelo dos fios de um destino no qual apenas ele era o deus. A
partir do momento que a porta foi aberta, os gemidos se perderam em um banheiro
vazio e as escadas levaram apenas ao final, a partir desse momento estavam em
lugares muito diferentes para nunca mais se encontrarem. Impossível até se
reconhecerem, pois os atos mais vergonhosos do coração impossibilitam a visão
da morte. Estavam ligados para sempre por um passado em comum, mas tão irreal e
sem importância para um e glorificado ao ponto da mentira para outro. A única
ligação ainda presente seria soterrada pelas lembranças fabricadas na pressa da
dor. A obrigação com que os dois encararam o novo caminho assustou os mais
atentos, porque estavam seguindo exatamente o mesmo percurso, mesmo que em
dimensões diferentes e mesmo que assumissem máscaras opostas. O riso e o choro
apontaram para nuvens disformes e tão poderosas que manteriam toda a ilha num desespero
de névoa eterna. Enquanto os ventos não vêm.
Apesar de tudo, não morreu e teve
que carregar o peso de um cadáver vivo nos ombros da consciência. Cada ato
realizado, por mais ínfimo que fosse, carregava toda a esperança que se sabe vã
e, por isso mesmo, luta a violência da existência. O acordar era um gesto
dedicado a ser relembrado depois, num amor de dores e paz, que a imaginação
pregava acontecer a qualquer momento. Os dias ainda se teceram na pior das
atividades humanas: o esperar inútil. Não é preciso ser sábio nos meandros da
vida para diagnosticar a inutilidade daquele método. As duas pedras recolhidas no leito do rio do
caminho do pé quebrado conservam-se como últimas relíquias dessa forma de
pensar, rechaçada por demais pelos estudiosos das entranhas das aves. Não se
reencontrarão, já que nem a matéria compartilha a mesma existência, mas
permanecem como tentativas de um desespero amoroso que se mantém, mesmo que
transfigurado. Ninguém sabe quando Deus vai enlouquecer.
Não são as datas comemorativas do
calendário da morte, nem mesmo os grandes acontecimentos, como a conferência na
esquina da rua, que abalam mais as frágeis raízes de uma respiração ofegante.
São os dias tranquilos da desesperança, quando nenhuma saída se oferece e o
consolidado sorri de satisfeito. O maior desespero, assim como a maior luxúria,
é a tentação da resignação. A capitulação aguarda o momento, aquele simples
abaixar de asas cansadas, para fincar bandeiras, reclamar direitos, desterrar a
rota de retorno, uma estrada trabalhada todos os dias, mas que cada vez mais se
enche de detritos, entulho e destroços. Ainda é cuidada com o afeto da loucura,
mas é mesmo a palidez de suas tintas que assusta o jardineiro fiel. São
caprichos do tempo que nem mesmo os grandes amores podem impedir.
Provavelmente, a única saída possível seja a vitória pelo cansaço.