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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O VELHO

O VELHO

O velho acordou dizendo que estava sentindo muito calor. Sentou-se em sua velha cadeira perto da janela e ficou olhando a cidade despertar de sua permanente sonolência. Só faltava um livro de poesia, mas ele não sabia qual escolher. Faltava também um café e um cigarro, mas ele não sabia onde achar nenhum dos dois. Tudo faltava na vida daquele velho. Ele estava sentindo um cheiro estranho. Um cheiro de corpo mal lavado. Um cheiro de corpo não lavado e perguntou aos céus de onde vinha aquele odor desagradável. E então ele percebeu que era ele mesmo e uma vontade louca de tomar banho apoderou-se de sua mente. Mas ele estava muito confortável ali, na cadeira perto da janela. Ele olhou para a rua calma e silenciosa e gritou. Um cachorro respondeu. Oh, que vida boa é a minha, pensou ele, só um cachorro responde a dor do meu peito. Ele suspirou e calou-se, porque sempre soube que a vida era isso mesmo. Na manhã dos seus oitenta e três anos ele gritou com esperança para Deus e um cachorro respondeu. Oh, como é triste essa vida, ele pensou mais uma vez. Ele estava fedendo e com fome, mas muito em paz ali na cadeira perto da janela. Não estava disposto a levantar-se dali para nada, nem mesmo para morrer. Talvez fosse morrer ali, e isso bastaria para ele. Sim, morrer no aniversário é uma coisa que todos desejam, não é mesmo? Especialmente ele, o velho fedido que estava completando oitenta e três anos de vida. E ele se pegou pensando a quanto tempo não trepava. Na realidade ele estava muito irritado naquele dia porque essa data sempre remete à nostalgia e a exames de consciência. E esse fedor que não o deixava em paz. Voltou a pensar há quanto tempo não transava. Ele não queria encarar a verdade e pensou em Deus. Deus é muito amigo, pensou. E lembrou-se que não foi à missa domingo e que ninguém devia ter sentindo a sua falta. Mas a vida é isso mesmo, pensou. Ele sabia que morreria ali, sentado na cadeira perto da janela e resolveu se levantar. Mas faltava coragem e uma boa oportunidade. Ninguém passava na rua e ele tentou olhar para o relógio. Acho que foi uma vã tentativa porque seu punho não obedeceu aos comandos do cérebro e não se levantou. Oh! E esse odor, esse fedor que atrapalha tudo. E a necessidade de se ouvir uma voz humana e essa necessidade de parar de sentir esse cheiro terrível de corpo mal lavado. Ele cheirava assim? Cheirou assim a vida inteira? E ninguém entendia essas necessidades de gritar repentinas que ele tinha. Ah, que raiva ele sentiu naquela hora. Ele precisava saber que horas eram! Alguém pode dizer? A raiva consumia o velho. O velho sozinho na sua cadeira perto da janela. O seu aniversário de oitenta e três anos passando e ele sozinho na janela. Acabou-se a paz e o mundo acabou e ele tinha uma grande necessidade de se irritar cada vez mais e tomar banho para não ouvir o que seus pensamentos diziam. A irritação se aproximava e ele não vai fechar a porta. Pare, pare, pare, que horrível! Que horrível! Esses pensamentos que nos seduzem a morte e a grande raiva que toma conta de todos os octogenários. Ah, então ele tomou a decisão de sua vida e levantou-se. Olhou para o relógio e eram 4:30 da manhã. E ele sozinho em casa, na vida, nesse tolo e porco universo. Ele se dirigiu ao banheiro, mas algo o dizia que esse cheiro vinha da alma e nem mil banhos iam fazê-lo desaparecer.

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